Um conto que nos fala das ilusões do poder, traduzidas na unanimidade, na confiabilidade cega e se traduz depois na galhofa seguida de desenrascanço. Ou como em política tudo é precário e onde não vale a pena procurar a gratidão.
Era uma vez um bom rei da Arábia, pacato e divertido. Vivia em seu palácio sossgado da vida, desfrutando sabiamente as artes da paz. Punha papelotes nas barbas para que encaracolassem melhor.
Olhava as moscas que passavam no ar com uma complacência magnânima. Atirava bolinhas de papel amarrotado aos seus antepassados, que estavam aos cantos das casas representados em porcelana. Fumava narguillé, encruzado num divã, sentado em cima dos calcanhares, tendo os olhos cerrados e fazendo sair fumo pelo nariz.
O reino mostrava-se satisfeito e contente.
Quando algum súbdito patenteava o mínimo vislumbre de descontentamento com a marcha dos negócios públicos, o rei mandava carinhosamente que lho trouxessem, passava-lhe a mão pela cara fazendo-lhe um carinho, lançava-lhe docemente uma corda ao pescoço, e enforcava-o defronte do palácio.
Depois do que, o monarca aparecia, risonho e benévolo, a uma janela, e fazia aos país esta fala:
- “Meus senhores e minhas senhoras! O incomodado retira-se. Se há por aí mais alguém que não esteja satisfeito com a marcha dos negócios, que o diga!”
Graças a esta política tão dedicadamente paternal e ao mesmo tempo tão simples, a satisfação era geral e o contentamento do povo não conhecia limites.
A PROCISSÃO PELAS RUAS
De quando em quando o rei, para divertir o corpo diplomático, saía em procissão pelas ruas.
De uma vez, ao fazerem-se os primeiros preparativos para uma destas festas, notou-se em conselho de ministros que as reais vestimentas de gala estavam incapazes de sair a público sem desdouro da coroa, por isso que no último banquete, tendo-se o monarca deixado tomar do sono sobre a travessa do pudim, os ministros das cortes estrangeiras e os seus respectivos adidos haviam deliberado chamar a atenção de Sua Majestade para uma questão de política internacional, atirando-lhe com algumas talhadas de melão e com o resto da mayonnaise.
De sorte que se resolveu mandar notas diplomáticas às potências estrangeiras para que estas deixassem de chamar a atenção de el-rei atirando-lhe com vitualhas que causassem nódoa, tendo o governo arábico de considerar como casus belli todo o arremesso que exorbitasse do justo limite do tremoço ou da bola de miolo de pão – sem manteiga.
E outrossim se deliberou abrir concurso de quarenta dias para a adjudicação de uma vestimenta nova destinada ao chefe de Estado.
Apareceu, entre outras, a proposta verdadeiramente notável de um tecelão, o qual não só satisfazia cabalmente a todos os quesitos do programa, mas ainda se obrigava a fazer as vestes e o real manto com o tecido por tal modo engenhoso, que o não veriam senão os homens de uma dada capacidade de espírito, e que para todos os estúpidos, o mesmo seria porem a sua vista naqueka andaina de fato e respectivo manto real como estarem simplesmente olhando para o puro ar atmosférico.
Mui agradado e satisfeito se mostrou o rei com a nova desta feliz descoberta e se serviu e houve por bem mandar que imediatamente lhe tecessem o maravilhoso estofo e dele se aparelhasse a vestimenta.
O príncipe lambia os beiços de alegria pensando na bela ratoeira que ia armar aos sábios do seu reino, oferecendo-lhes rebujçados de ovos e pastilhas de chocolate por baixo do manto, e cascando com o rigor da lei em cima de todo aquele que, por não ver o manto, lançasse a mão ávida aos doces.
E de muito desconfiado que el-rei andava com a legitimidade do talento nacional, começou logo de esfregar as mãos com impaciência notória, mandando reforçar a fôrca de barrotes novos e ordenando que se lhe preparasse corda em abundância.
Correu a notícia de boca em boca. Referiram-se e espalharam-a todas as folhas do reino. Não se falava noutra coisa. Era geral e profunda a ansiedade e expectação.
O tecelão, que tinha estado, por quinze dias misteriosamente encerrado em uma oficina do palácio, participou afinal que a vestimenta se achava pronta e que sua Real Majestade podia quando lhe aprouvesse passar e examiná-la.
O grande monarca porém, pela primeira vez em sua vida, hesitou.
A INVENÇÃO DA PÓLVORA
Era certo que os cortesãos lhe diziam todos os dias com referência aos altos quilates do seu espírito:
- É evidente, real senhor, e ninguém já hoje o ignora em todo o Universo, que foi Vossa Real Majestade quem inventou a pólvora!
Tantas vezes lhe tinham repetido este cumprimento palaciano, que ele havia acabado por lhe dar crédito.
Somente, meditando bem, não se podia lembrar como era que a pólvora tinha sido inventada por ele! E aplaudia-se muito que lhe houvessem guardado bem a receita porque, em verdade, achar-se-ia em profundos embaraços se se visse obrigado a inventá-la de novo.
Algumas vezes, querendo aprofundar esta ideia, uma nuvem negra atravessava o espírito do príncipe.
À noite, estando na cama, e tentando debalde decifrar algumas das charadas inseridas na folha oficial e feitas pelas duas casas do parlamento para recreio do clero e da nobreza, o tirano acabava por se enfurecer, fazia da gazeta uma bola, atirava com ela à cabeça do camareiro-mor encarregado de segurar o castiçal, cobria em seguida a cabeça com a roupa, punha-se de bruços, ferrava os dentes no travesseiro, e pelos silêncios tétricos da noite ouvia-se de quando em quando por debaixo dos cobertores de papa do real leito uma voz cava e soturna que murmurava raivosamente;
- Não! não! não! não fui eu que a inventei!
Com a singular prudência que o distinguia e que fazia dele um dos soberanos mais sábios de todo o mundo, o rei mandou que o primeiro ministro fosse em seu real nome examinar a vestimenta nova.
O FABRICO DA VESTIMENTA
Abriu-se então a porta da oficina. O primeiro ministro entrou. Tornou-se a fechar a porta, e o representante do rei achou-se diante de um tear vazio. Ao lado do tear estava um cabide também vazio. E nada mais estava no interior daquele aposento, senão ele, representante do soberano, e o tecelão, autor do estofo, em pé, altivo, satisfeito, com os braços cruzados no peito, esperando as palavras do primeiro ministro numa atitude confiada e soberba.
Esse homem portentoso, uma vez admitida a cláusula de que o tecido seria invisível para todos os estúpidos, ousara intrepidamente contar com a audácia da presunção humana até ao ponto de não fazer tecido algum, firme na convicção de que todo o homem, sem excepção, juraria estar vendo uma coisa que nunca existiu mil vezes antes da sua condição intelectual.
O ministro olhou um pouco no vácuo, franziu os olhos para os fazer mais pequenos e poder espreitar melhor, pôs a mão aberta como um alpendre por cima das sobrancelhas, deu dois grandes passos para trás, improvisou em seguida dois tubos com as mãos fechadas, pôs um tudo diante de cada olho, e definitivamente desenganado de que não via nada, expediu um grande grito de surpresa, de alegria e de espanto.
- Eu tenho estado até agora calado, a olhar, – explicou o primeiro ministro – não porque desde logo não visse distintissimamente a real vestimenta de Sua Majestade El-Rei, meu amo e senhor … Mas, sou obrigado a confessá-lo, entaralemou-se-me a língua diante de tamanha magnificência. Em verdade vos digo, que uma perfeição assim nunca em minha vida vi! tão fino! tão delicado! tão brilhante! tão … não sei bem como me expresse …
- Perdão! interrompeu o tecelão, V. Exª não repara certamente que está calcando o manto com uma tal insistência…
O ministro, ao ouvir estas palavras, deu seis pulos para trás com mais velocidade do que teria tido se debaixo dos pés se lhe houvesse desenrolado uma cobra cascavel!
- Oh! meu Deus! que me leva a fímbria da púrpura pegada ao tacão! – gritou o artista.
- Mil desculpas! mil desculpas! murmurou o ministro, fazendo-se rubro como um caranguejo cozido e arrancando do pé uma bota, que atirou ao teto.
- È o outro pé, senhor, é o outro pé!
O ministro atirou pelas ares a outra bota.
- Ar! ar! – gritou ele – Abra-me a porta! Tanta riqueza, tanto gosto, tanto luxo, ofuscam-me a vista … Já me sinto bom … Abra-me a porta ou sou capaz, no auge da admiração, de ter uma tontura e de pregar algum rasgão na vestimenta…
E apanhando a porta aberta, o primeiro ministro desembestou como um raio pelo corredor fora gritando aos brados:
- Maravilha! maravilha! maravilha!
REI MANDA VERIFICAR
O rei quis ainda fazer outra experiência, e depois das informações dadas pelo primeiro ministro, mandou o segundo, cuja cabeça tinha tantos pontos de semelhança com uma pedreira que o rei por muitas vezes, ao acabar de o ouvir discorrer, lhe chefara ao cachaço uma mâo-cheia de isca e lhe batera frequentemente com um ferro na nuca, a ver se fazia lume.
O segundo ministro, instruído, pela narração do primeiro, tão depressa se achou na oficina como gritou logo:
- Bravo! bravo! bravo!
E deu três salvas de palmas. Depois circungirando pelo aposento os olhos desmedidamente esbugalhados, acrescentou:
- Óptimo! magnífico! deslumbrante tudo! Mas quer que lhe diga francamente uma coisa?… Sabe com o que engraço mais?… É com o calçado!
E inclinando-se com mais atenção, assou reverentemente os dedos pelas asas das botas do primeiro ministro, que estavam por baixo do tear, levantou-as com respeito, fez uma genuflexão, e disse com uma comoção profunda:
- Isto está obra rica!…E agora se me dá licença, não me demoro mais neste primeiro exame porque corro a participar a el-rei, meu augusto amo, o que por meus prórpios olhos acabo de er.
- – Se este grande alarve conseguiu enxergar alguma coisa. então também eu hei-de ver! pensou consigo o monarca. E batendo com o cetro duas pancadas e um repique na porta da oficina:
- Abra lá isso!
O tecelão abriu a porta pôs um joelho em terra e disse:
- Senhor! tem Vossa Majestade diante dos seus reais olhos a vestimenta de gala que me coube a honra de fazer para Vosssa Majestade. Glorio-me Real Senhor, de que nunca até hoje, em parte alguma do mundo, se fez coisa mais admirável e mais rica. Este é o fruto das cogitações e das vigílias da minha vida inteira. Não peço a Vossa Majestade nem riquezas, nem honras, nem dignidades para mim. O artista acha-se superior a essas bagatelas! Desculpe Vossa Real Majestade a independência do artista. Mas, senhor, por minha pobre mulher, pela minha companheira (comovido, pondo um lenço nos olhos) , por ela, que tanto deseja ser viscondessa e ter uma quinta, pedia a Vossa Majestade que me fizesse visconde e mandasse abonar por favor uma propriedade boa. Enquanto à vestimenta que Vossa Majestade está vendo, o meu maior desejo é que Vossa Majestade a desfrute em seu real corpo por muitos e dilatados anos, como todos desejamos e havemos mister.
Enquanto o artista se expressava nesses termos cheios de desinteresse, de abnegação, de patriotismo e de independência, o rei olhava para todas as paredes e recantos da casa, para o tear, para o cabide, para os ministros e para o tecelão. Coçou por algum tempo na cabeça e por fim, como voz arrastada, disse:
- A obra está efectivamente boa… Vejo – claramente – que está boa… Apenas me parece,assim à primeira vista, que será talvez leve de mais!
- Oh! Vossa Majestade por bem tomar o peso!
- Sim, hei, tornou o príncipe. Apre! que pesa muito! (e voltando-se para o primeiro ministro):
- Ponha lá no programa da festa que havemos por bem ir na procissão sem a nossa camisola de flanela (Revertendo ao artista, com solenidade:
- Nós, el-rei, estamos contente com a vossa obra, e, em atenção aos vossos merecimentos e partes, vos nomeamos Visconde de Papafina em duas vidas.
E estendeu a real dextra ao tecelão, que, caindo em joelhos, ascendeu da sua plebeia condição de mesteiral, osculando a dadivosa mão de seu augusto amo.
O rei, fechando os olhos com uma grande majestade serena e terna, deixou-se oscular.
DIVISÃO NA IMPRENSA
A imprensa, os altos funcionários, o corpo diplomático, todas as corporações científicas e todas as sociedades sábias do reino foram convidadas a ir ao palácio examinar a maravilhosa vestimenta.
Os membros da Real Academia foram todos concordes no elogio da admirável tecido da vestimenta real, e o Visconde de Papafina foi unanimemente eleito sócio honorário.
Na imprensa política grande polémica suscitada pelos partidos, mas a mesma admiração unânime enquanto à maravilha da vestimenta.
As folhas ministeriais diziam:
- “Vejam como o talento pulula e como a arte floresce sob a sábia administração de um governo rasgadamente civilizador e amante do fomento e da ordem! A oposição é uma besta”
Os periódicos oposicionistas obtemperavam:
- “E todavia muito mais rica e, se possível, ainda mais aparatosa seria a vestimenta do nosso mui amado rei, se à frente dos negócios estivessem homens que falassem menos no fomento e na civilização e cuidassem mas na administraçáo da riqueza pública. O governo é um burro.”
O corpo diplomático também examinou a vestimenta. Escrupulosamente barbeados, profundos de sigilo e de etiqueta, os representantes das potências estrangeiras demoraram-se por muito tempo defronte do cabide vazio da oficina do tecelão, denunciando por meio de alguns gestos comedidos, reservados, admissíveis na melhor companhia, a sua admiração imensa.
Falaram misteriosamente por duas vezes ao ouvido uns dos outros: a primeira vez para perguntarem como cada um passava, e a segunda para responderem que cada um passava bem. Esta cerimónia a que todos os grandes do reino, todas as famílias titulares e a côrte toda em geral ligava sempre uma elevada importância política, produziu em el-rei e em todos os presentes uma viva impressão: eles passavam bem! Os ministros, olhando sempre para o cabide vazio, e agrupados em volta dele pela ordem hierárquica dos países que representavam, tomaram ainda algumas notas – em cifra – nas suas carteiras.
Depois do que, recolhidos todos com el-rei em uma das salas do palácio, correctos, grave, austeros, meditabundos, procederam à profunda cerimónia de tirarem as luvas, e jogarem bilhar.
A SOLENE PROCISSÃO
Chegou finalmente o dia em que o monarca tinha de estrear a vestimenta na solene procissão, que, para recreio da corte, do corpo diplomático e da nobreza, havia de percorrer a cidade, para esse fim juncada de flores e embandeirada de flâmulas e galhardetes.
Trataou-se de vestir o rei, o qual depois de bem lavado e frisado, tendo-se lhe limado os calos e cortado as unhas, se apresentou em camisa e de chinelas aos camaristas e ao Visconde de Papafina para que o vestissem…..
Com excepção da camisa, que era de linho de Irlanda com folhos de renda de Chantilly, todas as demais peças do real vestuário naquele dia grande brilhavam peça ausência, ou, – o que vem a dar na mesma- consideravelmente feitas com o novo e extraordinário tecido.
Duas horas e meia levou a vestir, abotoar, pregar, compor o príncipe. O tempo estava seco mas frio. o termómetro, consultado várias vezes pelo rei enquanto lhe iam deitando para cima do corpo roupas e mais roupas do estofo maravilhoso, marcava 6 graus Reáumur
As reais carnes estavam lívidas e arrepiadas como as dum peru sem penas. O príncipe espirrava com frequência e assoava-se muito a um lenço de fazenda igual à da vestimenta, o qual o Visconde de Papafina lhe metera na mão. Com a outra mão Sua Majestade segurava uma prega de manto, tendo arqueado o braço com uma graça particularmente pitoresca e distinta.
Todas as grandes personagens da corte, cavalheiros e damas, seguiam el-rei suspendendo a cauda do real manto.
O efeito da vestimenta e do manto em todas as pessoas que presenciavam a passagem do cortejo era extraordinário e profundo. Murmúrios de admiração e de aplauso saudavam a obra extraordinária do artista exímio que havia concebido aquele tecido para os olhos das inteligências privilegiadas.
Viu-se então que todos sem excepção possuíam naquela culta cidade o privilégio da sumidade do espírito. Os clamores dos que viam, dos que admiravam, dos que não podiam cessar de ver e de elogiar, eram convictos e unânimes.
As comissões dos festejos nas diversas ruas do trânsito tinham regulado as manifestações da pública admiração por meio de programas especiais. De modo que cada rua admirava de seu modo.
Umas bramiam, outras davam palmas. Nestas havia desmaios de comoção e de espanto; naquelas convulsões e regozigo e de aplauso.
O SILÊNCIO CRIADOR
Chegara-se a uma rua em que o silêncio era profundo. Os moradores, de acordo com a comissão respectiva, tinham resolvido patentear a sua elevada inteligência e a sua fina crítica emudecendo.
De um cabo ao outro da rua, nas janelas e nas sacadas de todos os prédios, de princípio ao fim, de cima a baixo, multidão imensa, apinhada, coMpacta, tinha as mãos espalmadas para a frente adiante do rosto, os olhos arrojados para fora das órbitas e as bocas todas abertas, escancaradas, parecendo que todas aquelas maxilas estavam apenas seguras pelas orelhas. Era de um efeito prodigioso e tocante.
De repente, no meio daquele silêncio tão expressivo e grandioso, ouviu-se de cima de uma trapeira uma voz fina, clara, convicta, que gritou:
- O rei vai em fralda!
Todos olharam para o ponto de onde partira aquela voz.
Por cima de um telhado, com um braço passado em volta de um mastro em que estava içada uma bandeira, um rapazito alegre, inclinado para a rua, pendente em cima da multidão, apontava com o dedo para o grande monarca, e ria às gargalhadas estrepitosas, sinceras, profundas.
O rei parou de repente. Perdeu a posição em que lhe tinham posto os braços para apanhar as pregas do manto. Transtornaram-se-lhe enormemente as feições, bateu uma palmada na testa, e disse:
- Aquele bandido não tem respeito, mas tem razão. Venha já à minha real presença o Visconde de Papafina!
Um dos circunstantes apontou-lhe para um rolo de fumo que se via ao longe, muito ao longe, no horizonte, sobre a água do mar.
Aquele fumo era o Visconde de Papafina que passava à América com os reais tesouros que lhe tinha doado a coroa.
- Ah! infames! ah! canalhas ah! traidores! ah! camelos! bramia o rei com voz terrível. É efectivamente em fralda que eu estou. Ludíbrio e vingança! Em fralda e com um reumatismo agudo no real corpo! Tragam-me depressa a minha forca e um capote! Uma camisola de flanela” umas calças! uma tipóia! um alfange com peçonha no gume… e meio grogue!
ALEGRIA SEM BARREIRAS
Mais ninguém podia ouvir as reais ordens. A plebe desenfreada, a canalha vil, a gentalha sórdida, repetia em brados descompostos o grito do pequeno celerado. Diante das atitudes estranhas e nunca vistas daquele grande rei, um dos primeiros potentados do mundo – em cólera e em camisa – a alegria pública não conhecia barreiras.
Era um coro enorme, imenso, infinito, de todas as vozes que pode tomar o riso e a assuada. Era a casquinada, o guincho, o uivo; as imitações de todos os animais: o grunhido, o berro, o zurro, o cacarejo e o relincho; todas as vozes da natureza: o trovão, a carga de água, o silvo do vento e os bramidos do mar; todas as invenções da troça: o assobio, a pateada, os nomes, os epítetos, a rela, o chocalho, a zabumba, os repiques nos tachos, nas panelas de lata, nas baterias de cobre das cozinhas; os pós, os estalos, os esguichos de água, os busca-pés e as bombas de fogo de estremalhar os curros.
E no meio deste charivari monstruoso, indescritível, de ensurdecer o mundo, uma só palavra humana gritada por seis mil bocas: – Em fralda! em fralda! em fralda! E em gargalhadas infinitas, inextinguíveis, todos gritavam – Em fralda! em fralda!
Mas não era só o povo, era a mesma nobreza, era o próprio clero! O espírito diabólico do riso e da chufa tinha-se apoderado de toda aquela multidão, e comunicara-se a todo o mundo, às pessoas mais graves, mais conspícuas, mais sérias.
O exército depusera as armas e desabotoara os uniformes para não rebentar com o riso. ínfimos galuchos, arrebatados pela galhofa, montavam cavalo nos seus coronéis e davam palmadas no ventre de velhos generais encanecidos no serviço da pátria.
O estado-maior de Sua Majestade, não podendo rir mais em pé, espojava-se delirante no macadame.
Os prelados, os grandes sacerdotes, os pontífices máximos pinchavam, cantavam de galo, agitavam energicamente as mãos abertas adiante dos narizes e buliam freneticamente com os dedos como se estivessem tocando clarinetes invisíveis e aéreos.
O corpo diplomático rolava pelos passeios impelido pelas convulsões internacionais da gargalhada.
Os primeiros fidalgos, os grandes do palácio, os ministros, a nobreza toda, gritavam imensamente: Agarra! pilha! bota fora! Pum! Pum! Lá vai ele!Bumba! Catrapus! Cócórócócó!
E o grande rei, a pé, em camisa, só, abandonado, pedindo a Deus para morrer, sapateava as ruas, correndo como uma corça, como uma lebre, como um gamo.
Até que, cheio de água, de pós, de farinha, de ovos, que lhe tinham atirado, meio cego, meio surdo, meio morto de desalento e de cansaço, chegou finalmente a palácio, onde caiu de cama e enfermou de todas as doenças de que rezavam os livros escritos por todos os sábios do seu reino.
E por tanto tempo permaneceu doente que quando recuperou a saúde os seus primeiro e segundo ministros tinham sido condenados três vezes pelo povo à pena de bastonadas e ao suplício da canga. (…)
***
UMA COISA AGORA PERGUNTAREI EU, – narrador obscuro desta história exegética da opinião – a ti leitor sensato:
Teve aquela criança que falou do alto de uma trapeira a intenção acintosa de deprimir ou de mal-dizer?
Quis ele porventura desgostar ou ferir o rei, a nobreza, o clero, a academia, o corpo diplomático, os ministros da coroa, os altos funcionários, a imprensa, a crítica, o povo, a cidade, o país?
Tinha ele acerca do que expunha um juízo antecipado, uma intençáo secreta?
Determinava-o o orgulho da originalidade, o amor do paradoxo, o espírito da argúcia e da polémica, a índole inquieta e irritável, a raiva demolidora?
Professava uma política perigosa, uma filosofia suspeita?
Teria , pelo menos, escondida no seio a arma terrível do gracejo, que bate nos factos como um ariete, desmantelando arbitrariamente as instituições velhas e suprimindo os homens ridiculos?
Não. Repara bem, leitor. Naquele pequeno que lançou uma palavra dissolvente à solene procissão oficial em que se reuniam todos os granes homens e todas as grandes coisas do seu tempo, não se dava senão a circunstância bem ordinária e bem simples: Ele viu uma camisa comum onde toda a gente admirava um real manto entretecido de todas as subtilezas da arte e de todas as sumptuosidades da natureza. E depois disse o que viu.
São como aquela criança estes pequenos livros, simples, desambiciosos e humildes. Eles não o têm a presunção da ciência nem se julgam armados com os instrumentos infalíveis da justiça.
Encerram apenas – a criancice da verdade.
Por isso o que os escreve os considera tão pouco que os julgaria indignos de tos dedicar, se não reflectisse, leitor, que, por mais desautorizada que seja, a verdade vale tanto, que mesmo proferida inconscientemente por um néscio ou por um rústico, pode, como na história do manto arábico, bastar algumas vezes para dispersar os cortejos, para desarmar exércitos, para derribar as forcas, para pòr em fuga os tiranos, para abater os medíocres, para vingar os oprimidos e para consolar os justos com o protesto triunfal de uma gargalhada enorme”
HANS CHRISTIAN ANDERSEN – Escritor dinamarquês, nascido em 1805 e falecido em 1875, é o autor de contos de fadas mais conhecido mundialmente. Enquanto que as peças de teatro, romances, poemas, livros de viagem e muitas biografias que escreveu só são conhecidos na Dinamarca, os seus “Contos” (1835-1872) encontram-se traduzidos em muitas línguas. Entre os mais famosos destacam-se “O Patinho Feio”, “A Sereiazinha” e “A Rainha da Neve”. O texto aqui descrito assume a escrita como foi redigido por Ramalho Ortigão em Farpas, volume IV.